Neste artigo apresentamos argumentos para afirmar que é urgente o governo federal brasileiro assumir a coordenação fiscal da crise colocada pela Covid-19. Estados e municípios são os entes federativos que atuam diretamente no enfrentamento da pandemia com atendimento à saúde e a assistência social, mas sua situação fiscal é frágil, como mostraremos. Já o governo federal tem instrumentos e legitimidade para suportar o ônus fiscal e precisa fazê-lo para evitar um agravamento ainda maior da crise. Os estados brasileiros, depois de experimentarem uma expansão de receitas nos anos 2000, tiveram em 2014 uma queda de receitas da qual ainda não se recuperaram, como mostra o gráfico abaixo.
As receitas totais municipais estão praticamente estagnadas desde 2014, com uma leve alta concentrada em poucas capitais, sendo que a maioria dos municípios têm hoje dificuldades em suas contas. A receita total dos entes subnacionais não voltou ao patamar de 2014. Hoje, apenas 11 estados e menos de 1/3 dos municípios estariam autorizados a endividar-se, pelos critérios da Secretaria do Tesouro Nacional (STN).
Esta situação de fragilidade fiscal é crítica para o enfrentamento da pandemia por dois motivos. Por um lado, o enfrentamento da crise obriga a aumentar gastos com políticas de saúde para atender os casos confirmados de Covid-19 e aumentar a prevenção, e com políticas de assistência social para garantir sobrevivência à população de mais baixa renda e trabalhadores informais. O Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) são sistemas federativos, nos quais a União tem papel de coordenação e financiamento, mas as ações são executadas pelos municípios e estados. Por outro lado, há uma perda aguda de receita de impostos sobre bens e serviços (ICMS e ISS) em função da adoção do distanciamento social como forma principal de redução do contágio e prevenção do esgotamento dos sistemas de saúde.
Em março, a previsão do Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do DF (COMSEFAZ)[1] era de uma perda mensal de 20% da arrecadação, ou cerca de R$ 14 bilhões ao mês. Em abril, análises realizadas pelo IBRE/RJ[2] estimaram perda de arrecadação de ICMS de alguns estados de até 40%. Essa previsão afeta não somente os estados, mas também os municípios que recebem uma quota-parte do ICMS e, além disso, arrecadam o ISS, também altamente afetado com a queda do varejo.
Em resumo, os estados e municípios estão pressionados para o atendimento da pandemia, mas com baixa capacidade fiscal para fazê-lo. Ainda que fosse possível uma autorização excepcional para que estados e municípios se endividassem neste momento, isso não seria adequado. Há uma enorme desigualdade fiscal entre estados e municípios brasileiros, o que implicaria que nem todos conseguiriam acesso a crédito e, além disso, em última instância, a União precisaria dar garantias a todo e qualquer empréstimo. Essa descentralização do endividamento acarretaria custos e necessidade de controles e risco de maior desequilíbrio fiscal futuramente.
Diante dessa circunstância, cresce o papel do governo federal na coordenação fiscal da crise. Para executar esse papel, a União já está amparada pelo Decreto Legislativo que reconhece estado de calamidade pública[3], que lhe possibilita maior flexibilidade na geração de despesas não previstas na lei orçamentária. Além disso, o governo federal foi autorizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a emitir títulos da dívida pública para pagamento de despesas correntes, isto é, o cumprimento da regra de ouro[4] do orçamento está suspenso.
Há, portanto, sustentação legal para o governo federal aumentar o endividamento público, como aliás diversos países do mundo estão fazendo. O gráfico 2, a seguir, mostra que diferentes países estão combinando medidas “acima da linha” (medidas com impacto no resultado fiscal primário, em verde), com aquelas que envolvem empréstimos e garantias, “abaixo da linha” (em cinza, sem impacto imediato no resultado primário).
A gestão da dívida pública nacional é facilitada pelo fato de Tesouro Nacional ter enorme experiência na administração dos títulos federais e no controle do endividamento dos entes subnacionais desde os anos 1990. Outro elemento facilitador é termos de 90% da dívida pública brasileira lastreada por credores domésticos e denominada em moeda nacional, além de o país deter reservas internacionais expressivas, o que praticamente elimina a possibilidade de crise no balanço de pagamentos, ao contrário de outros países da América Latina.
Apesar dessas possibilidades, o governo federal demora em tomar atitudes concretas. O Senado aprovou neste início de maio, após quase um mês de discussão no Congresso Nacional, uma forma de socorrer estados e municípios por meio de ajustes nos projetos de lei (PLP) 149/19 e 39/2020[6]. O substitutivo prevê R$ 60 bilhões de transferências diretas aos entes subnacionais, mas depende de aprovação da Câmara, sanção do Presidente da República e operacionalização. Essa demora se deu pelo temor por parte do governo de que o socorro financeiro implique uma necessidade de recursos muito vultosos se a crise for de longo prazo, o que de fato pode ser.
Se há temor sobre o endividamento do país para financiar as políticas de garantia de renda (federais), atenção à saúde e socorro aos estados e municípios, o Brasil poderia contar também com outra fonte de recursos: o aumento da tributação sobre as altas rendas de pessoas físicas. Como mostramos em outra publicação[7], no Brasil a tributação é bastante regressiva, incidindo muito sobre o consumo e a produção e muito pouco sobre as altas rendas de pessoas físicas. Em momento de crise sanitária, econômica e social sem precedentes, nos parece fundamental um ajuste tributário que possa, em conjunto com o aumento do endividamento, criar um fundo de recursos controlado e destinado ao enfrentamento da Covid-19.
A questão mais relevante neste momento é agir. O Brasil anunciou uma série de medidas, inclusive a possibilidade de aumentar o endividamento, mas ainda são medidas tímidas e não concretizadas. As ações fundamentais de estados e municípios precisam ser coordenadas e apoiadas pela União, de forma urgente e efetiva, para que possamos reduzir os impactos de saúde, de falta de renda e de desaceleração econômica. A combinação de uma estratégia centralizada de endividamento com uma contribuição emergencial sobre as altas rendas de pessoas físicas nos parece a mais adequada para o enfrentamento desta grave crise.
[1] https://static.poder360.com.br/2020/03/v6-Ofi%CC%81cio-COMSEFAZ-056-20-DADOS-ME-II.pdf.pdf
[2] O IBRE com base nos dados de acompanhamento periódico do varejo brasileiro, aponta que a queda da arrecadação pode ser de aproximadamente 40% em abril/maio: (https://www.cielo.com.br/boletim-cielo-varejo/)
[3] Este decreto é previsto na Lei Complementar 101/2000 (LRF), artigo 65.
[4] Regra constitucional que obriga que as receitas obtidas com emissão de títulos públicos só possam ser usadas para despesas de capital.
[5] https://www.imf.org/en/Publications/FM/Issues/2020/04/06/fiscal-monitor-april-2020
[6] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2206395
https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8103880&ts=1588474369113&disposition=inline
[7] https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/por-uma-contribuicao-social-emergencial-para-enfrentar-a-covid-19/
AUTORES:
Ursula Dias Peres, Doutora em Economia pela EESP/FGV/SP, Professora da EACH/USP, Pesquisadora do CEM/USP e do King’s College London/Brazil Institute. Foi Secretária Adjunta de Planejamento, Orçamento e Gestão do Município de São Paulo
Fábio Pereira, Doutor em Administração Pública e Governo (FGV/SP), foi Assessor Especial do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Secretário Adjunto de Planejamento, Orçamento e Gestão do Município de São Paulo.